Uma comunidade de solidões
Atlas da Solidão Appleton, 29 de abril, 2023
Conferências de encerramento
14H00-16H00
Adalberto Carvalho + Sónia Martins
Intervalo
16H30-18H30
Ana Cristina Pereira + Rui Miguel Costa
Moderação de Marta Rema
Duração (cada): 2H00 com intervenções do público
Como é que a vida moderna se tornou tão solitária? Até à contemporaneidade, muito poucos seres humanos viviam sozinhos. Aos poucos, não muito mais do que há um século atrás, isso mudou, e hoje, em todo o mundo, há cada vez mais pessoas a viver sozinhas, uma percentagem que se acentua em particular nos países mais ricos. A solidão, parece desnecessário dizer, é tóxica e terrível para a saúde. Mas é importante manter as coisas em perspetiva. É inadequado comparar a vulgarização da vida sozinho com a “epidemia de solidão”, que é o que os artigos dos jornais escrevem frequentemente em manchetes alarmantes. Os ingleses têm duas palavras para se referirem a dois tipos diferentes de solidão: loneliness — o estado negativo de estar sozinho, caracterizado pela sensação de falta — e solitude — a solidão que se escolhe, se deseja e traz felicidade, que amplia a consciência de si, a disponibilidade para a escuta, a criatividade, o sentido crítico e que reduz o stress. Em português podemos traduzir a primeira por solidão e manter a segunda, que o dicionário indica como linguagem poética. A primeira pode ser insuportável e é um sentimento comum e pode matar. A segunda é um sentimento benéfico, é mais raro e transforma a vida. A sociedade conta uma história em como fazer as coisas sozinho — comer sozinho, viajar sozinho, ser solteiro — está diretamente associado à tristeza, estranheza e injustiça. Mas há uma grande diferença entre a solidão e a solitude (do latim solitudĭne-).
A depressão e o suicídio foram os fatores determinantes para que países como a Inglaterra e o Japão tenham criado os seus Ministérios da Solidão e para que a Austrália, a Alemanha e o Canadá se preparem para lhes seguir os passos. Mas há mais diferenças a estabelecer quando falamos de solidão: o isolamento social é entendido como o estado em que o contacto com os outros é mínimo ou inexistente. Distingue-se da solidão, que é um estado subjetivo com sentimentos negativos sobre ter um nível de contacto social inferior ao desejado. Embora algumas definições caracterizem a solidão como uma forma de isolamento social, outras afirmam que a solidão é uma reação emocional ao isolamento social. Os dois conceitos não são necessariamente coexistentes: uma pessoa pode sentir-se socialmente isolada e não se sentir solitária. Da mesma maneira, pode estar socialmente vinculada, mas sentir-se só.
O fenómeno da solidão é vasto e complexo. Apesar de estar presente em todos os setores da sociedade, tendo por isso deixado de ser um problema de velhos, a verdade é que ninguém fala de solidão. A nível político o tema está completamente silenciado. E, no entanto, a solidão é uma questão política. Ser solitário não é apenas estar isolado. É não poder mostrar o seu autêntico eu. É sobre a dificuldade de encontrar pessoas com quem possamos estabelecer uma verdadeira união. Com quem possamos partilhar a nossa angústia. Não é não ter pessoas à volta, por perto ou à distância de uma rede social, é não poder comunicar-lhes aquilo que é importante para nós. E não é apenas um sentimento de negligência pelos mais próximos, é também um sentimento de falta de apoio e atenção dos nossos concidadãos, do Governo e dos nossos empregadores. A solidão é um estado pessoal, social, económico e político. Quando o neoliberalismo surgiu nos anos 80, impôs implacavelmente a valorização da autonomia individual e interesse próprio acima do interesse da comunidade e do bem comum. O neoliberalismo é uma forma selvagem de capitalismo com ênfase na liberdade: liberdade de escolha, mercados livres, liberdade de interferência do Estado e dos sindicatos. O seu desenvolvimento foi crucial na atual crise de solidão: aumentou o fosso dos rendimentos. Criou um mundo dividido entre vencedores e fracassados, Estados escravizados pelos mercados e uma sociedade onde temos de nos defender. Uma sociedade onde cada um tem de cuidar de si mesmo pois mais ninguém o fará é uma sociedade de solitários. A solidão e o populismo de direita também andam de mãos dadas. Foi Hannah Arendt que escreveu pela primeira vez, no livro As origens do totalitarismo, sobre o elo entre a solidão e a política da intolerância (sobre como pessoas isoladas reagem com agressividade). A solidão não é de o único fator impulsionador do populismo, mas é um dos motivos mais importantes. Há atualmente diversos estudos disponíveis sobre o papel da solidão no reforço de partidos como o Front-National, de Le Pen, e o PVV neerlandês, por exemplo. A participação em ações cívicas ou comunitárias reduz-se substancialmente, há falta de amigos, etc. Num estudo feito junto dos eleitores de Trump, a maioria das pessoas respondia ‘conto apenas comigo mesmo’. A solidão é também o sentimento de ser tratado injustamente, de se ver abandonado pelas instituições e incapacitado pelo Estado. A ausência de apoio das instituições, o vazio das redes de cuidados e a falta de profissionais, conduzem à obstrução da cidadania. Tal como o vazio de reconhecimento pelos nossos concidadãos. As pessoas que sofrem descriminações raciais, étnicas ou xenófobas sentem-se ainda mais solitárias. Bem como aquelas que são visadas por comportamentos sexistas e que são, como sabemos, na maioria mulheres.
E depois há as tecnologias. À medida que o nosso mundo se tem tornado cada vez mais pequeno com o aumento da conectividade através da Internet e das redes sociais, tem também vindo a tornar-se mais solitário. Porquê? Os écrãs estão a devorar a nossa capacidade de estar atento. Os smartphones tornaram-nos zangados e tribais, roubam a nossa atenção em detrito da capacidade de comunicar eficazmente e com empatia. Algoritmos avaliam capacidades cognitivas, características psicológicas, inteligência emocional e aptidões sociais e são manipulados para criar viés de rejeição ou inclusão (para dar um exemplo, a Amazon contratou uma empresa de IA que aprendeu a rejeitar CV’s de mulheres na contratação). Além disso, não percebemos como os algoritmos funcionam, a sua opacidade exacerba o nosso sentimento de impotência. E a solidão medra no vácuo criado pela impotência. Somos observados e, contudo, somos totalmente invisíveis. Ninguém está a escutar, sentimo-nos vulneráveis e sem controlo.
Como podemos passar da solidão à solitude? Um dos segredos é a conexão com a natureza. Passar tempo na natureza, sozinho, com amigos ou com a família, irá acabar com qualquer solidão e transformá-la em solitude. Além disso, passar tempo na natureza leva a uma melhor saúde geral, reduzindo os riscos de contrair inúmeras doenças. Esta é uma das razões porque é tão importante trazer a natureza para a cidade e porque cidades com falta de árvores e jardins como Lisboa, ao contrário do que algumas mensagens concentradas apenas na inovação tecnológica tentam passar, não são um exemplo para o futuro. Outra estratégia é usufruir de silêncio. A aceitação de si próprio vem e é potenciada de muitas maneiras através do silêncio. O silêncio pode ser incómodo, mas quando se está totalmente conectado e confortável consigo mesmo, não há nada de estranho no silêncio. Podemos começar por abandonar os auscultadores alguns minutos por dia. Por outro lado, a solidão não é apenas causada pelas circunstâncias da nossa vida privada e familiar, mas também pela forma como atualmente trabalhamos: os escritórios abertos são um exemplo de como a arquitetura se tem vindo a tornar hostil, um dos muitos fatores que tornaram o local de trabalho um espaço especialmente alienador e muitos outros aspetos destinados ao aumento da produtividade estão, afinal, a produzir o efeito contrário por nos fazerem sentir isolados.
No encerramento do ATLAS DA SOLIDÃO, no dia 29 de abril, falamos com especialistas sobre o tema e com o público para aprofundarmos o tema. Adalberto Carvalho (Filosofia), Sónia Martins (Psicologia), Rui Miguel Costa (Ciberpsicologia) e Ana Cristina Pereira (Ciências da Comunicação) reúnem-se com o público para uma conversa na Appleton que relaciona saberes, vivências e interrogações.
*Título inspirado no livro Sobre a ideia de uma comunidade de solitários, de Pascal Quignard, publicado no Sr. Teste.